terça-feira, 22 de outubro de 2013

"O Preto Mais Branco do Brasil":
Vinícius é 100!


"Não és um só, és tantos como/ O meu Brasil de todos os santos"... Assim, no emblemático Samba da Bênção, o "poeta e diplomata" (e ainda dramaturgo, jornalista e compositor dos melhores) Vinícius de Moraes se referia ao inconteste maestro Moacir Santos - mas bem que poderia estar referindo-se a si mesmo... Claro que isto não era o estilo do Poetinha, notório fanfarrão boêmio e homem viajado e versado nas melhores letras, mas sempre humilde. Seria, no entanto, o mínimo para apor como uma introdutória e justa apresentação a este que é um dos artistas brasileiros mais completos de todos os tempos!

Completo, sim, pois foi de poeta existencialista do mais profundo calibre a compositor popular das mais belas, ricas ou mesmo "divertidas" letras de nosso cancioneiro (até alegres sambas soltos como Deixa e Formosa trazem alguma riqueza nos versos). Namorou o Teatro com trabalhos icônicos (Orfeu da Conceição, que ganhou o mundo com o filme de Palma, de Globo e de Oscar), mas flertando o tempo todo com o Cinema, como um bem humorado cronista mais do que um mero crítico. E, ainda por cima, abriu precedentes e despertou muita inveja em sisudos poetas de então quando viajou de solene escritor a artista folgazão, sempre de copo numa mão (e cigarro na outra), camisa entreaberta e parceiros musicais da melhor estirpe (o "Tom do Vinícius", o Chico e a Miúxa "filhos do amigo", o João Gilberto da batida incomum, o Baden dos afro-sambas, o Toquinho da fiel e derradeira parceria...). Um artista único, mas cheio de tantos gênios em si mesmo que fica difícil para um ardoroso fã como este humilde escrevinhador que vos fala escolher um "Vinícius favorito"...

Ele foi o Vinícius da Garota de Ipanema, lindíssima letra sobre a igualmente maravilhosa música do "Tomzinho", uma das canções mais tocadas do mundo - dizem que só perde pra Yesterday, o que tenho minhas dúvidas... Foi também aquele que amou os amigos (companheiro da nata dos grandes gênios das artes), fidelizou os parceiros ("Sim, ele era ciumento", afirmou em várias ocasiões o amigo da última hora Toquinho, que com o Mestre esteve no seu último suspiro no longínquo 1980), ajudou quem pôde e adorou as mulheres (só de casamentos com elas foram nove: paixões avassaladoras, enquanto "duro"!). Por isso, para além do artista, de se amar também o homem barrigudo, desleixado, porém generoso e dos olhos bêbados de alegria sem amanhã por trás do mito: como é bom saber de suas histórias e ver suas fotos, com aquela cara cheia de ressaca de vida, de amor e de poemas musicados num eterno jeito despojado e a cada ano mais surpreendente...  

Minha vida ao lado do amigo distante começou na minha adolescência, uns 12 anos depois de sua precoce partida: mergulhei, primeiramente, nos discos e CDs de seleções de seus clássicos; depois conheci sua Bossa; e, já na juventude, muito aprendi sobre Poesia quando Jandira me presenteou com Vinícius de Moraes Poesia e Prosa Completa - ali vi seu obscuro e metafísico início na arte dos versos, sua prosa jornalística de paixão pelo Cinema em críticas-crônicas maravilhosas (sobre Chaplin e muitos outros bambas da Sétima Arte) e terminei aprendendo inúmeras novas canções maravilhosas, todas a incorporarem-se à minha veia poética e a me deixarem mais errante e amante da vida do que o sisudo de até então...

Falar de um ídolo é sempre difícil. Afinal, ao lado de Drummond, Bandeira, Cecília, Quintana, Leminski e os maranhenses Dias, Gullar e Nauro Machado,Vinícius de Moraes me ensinou o que eu sei (e vivo) da Poesia - com um agravante: com a Música gigantesca dos seus sambas e trovas e valsinhas cheios de melodia, tal como se dá com Chico Buarque, a Poesia do Mestre "pega" bem mais rápido! E, assim como acontece quando se está diante de um ídolo - as palavras cessam e não se sabe bem o que dizer... -, assim me ocorre agora em relação ao Vinícius de longa data (tal como ocorreu quando me deparei pela primeira vez com o ídolo Nauro Machado, diante de quem eu só gaguejava e conseguia dizer que escrevia umas coisinhas - com a "vantagem" de este ser primo do meu pai)! 

Mas há, sim, uma faceta a destacar, para individualizar o "meu Vinícius" e separar do restante. Como comecei com as seleções, os CDs que mais caíam em minhas mãos e me definiram, inicialmente, o Poeta foram justamente com canções de uma das suas melhores fases de vida, a da "superação": justamente depois da amarga aposentadoria compulsória pelo nefasto AI-5 e do ocaso artístico, onde os "intelectuais" lhe diziam que "não dava mais", surgia o "Vinícius baiano" (até com uma baiana ele se casou), parceiro do Baden (nos famosos afro-sambas, como a obra-prima Canto de Ossanha) e do Toquinho (de Tarde em Itapoã, Testamento, A Bênção, Bahia e de inúmeros outros sucessos nos 10 anos finais), a popularizar-se como um novo velho ícone pop daqueles tempos! Passando a gozar de popularidade e de uma musicalidade ainda mais poderosa em harmonia, misto de samba e percussões africanas, aliada a mágicas letras que remetiam a coisas profundas do nosso Brasil, especialmente ligadas ao nosso cotidiano, à cultura baiana, aos cultos afro-brasileiros, à capoeira, ao amor livre, leve e solto... Este é o meu Vinícius!

Não posso negar que, sendo fã, tudo de sua obra me agrada! Suas canções ao lado do Mestre Tom Jobim, por exemplo, especialmente as trabalhadas para a peça e para o filme Orfeu da Conceição/ Orfeu Negro (Se todos fossem iguais a você, Lamento no Morro, A Felicidade...) e as clássicas da Bossa Nova (sendo Chega de Saudade não só a minha canção nacional favorita como uma das mais belas canções já feitas), já são mesmo parte de mim... Mas há algo de "militante" na obra de Vinícius desde meados dos anos 60: não por acaso, ele sempre foi um dos intelectuais mais atuantes na interligação entre os sambistas populares do morro e os ditos eruditos, sempre evidenciando uma grande preocupação político-social em muitos poemas (Pátria Minha, O operário em construção etc.) e mostrando sua latente veia esquerda, inclusive ao lado de Lula (que honrou o amigo, quando Presidente, com as devidas promoções da carreira, a corrigir a injustiça de longa data) num histórico evento para metalúrgicos nos anos 60... Assim, não há como não amar o divisor de águas daquele branco "erudito e letrado" que então se reinventava ao lado de um jovem parceiro e de canções cada vez mais populares... Saravá!

Tanto é que um dos seus maiores clássicos, o Samba da Bênção, parceria com o mago Powell que abre esta crônica, vem carregado desta musicalidade despojada e "baiana", numa legítima "aula sobre o samba", gênero maior da nossa Música, evidenciando, lá em 1962, todas as características mais marcantes da obra de Vinícius, de antes e de depois: o incondicional amor pelas mulheres (contrariando seu próprio estereótipo "beleza é fundamental": Uma mulher tem que ter/ Qualquer coisa além da beleza/ Qualquer coisa de triste/ Qualquer coisa que chora/ Qualquer coisa que sente saudade); a religiosidade e o metafísico (os versos O bom samba é uma forma de oração/ Porque o samba é a tristeza que balança/ E a tristeza tem sempre uma esperança/ (...) De um dia não ser mais triste, não A vida é pra valer/ E não se engane, não: é uma só definem bem esse seu lado); sua eterna gratidão de afeição para com grandes nomes que passaram em sua vida, dentro e fora da Música (para quem ele pede a bênção do título: ialorixá Senhora, Pixinguinha, Sinhô, Ismael Silva, Cartola, Noel, Tom Jobim...), tudo isso aliado à sua então recém-declarada nova condição de "negritude" (Eu, por exemplo, o capitão do mato/ Vinicius de Moraes/ Poeta e diplomata/ O branco mais preto do Brasil/ Na linha direta de Xangô, saravá! (...) A bênção, todos os grandes/ Sambistas do Brasil/ Branco, preto, mulato/ Lindo como a pele macia de Oxum)... 

A propósito, Caetano confessa, no mais-que-didático (porém interessante) documentário Viníciusque, em sua juventude, voltando à sua Santo Amaro da Purificação depois de uma viagem ao Rio, onde teria visto um negro na TV sendo entrevistado sobre a sua estreia na peça Orfeu da Conceição (famosa por trazer para a realidade negra dos morros cariocas o mito grego de outro artista completo, Orfeu, e sua tragédia com Eurídice), dizia a todo mundo na sua terra natal que Vinícius de Moraes era negro! Apesar de ter-se confundido e achado que o ator Érico Brás, protagonista da peça, fosse o próprio poeta-dramaturgo, acabou propagando uma "verdade" depois confirmada em canção pelo próprio Vinícius... Não errou, portanto.

É, todo mundo se confunde, alguma vez, com esse cara múltiplo e tão presente na nossa Cultura: eu mesmo, no "alto" dos meus 5 ou 6 anos, achava que Vinícius ainda vivia quando a Globo reprisava, lá pelos idos de 1983/84, o especial A Arca de Noé: aquelas adoráveis canções, já tão populares e queridas, sobre vários bichinhos e interpretadas por grandes nomes da MPB (Toquinho, Elba Ramalho, MPB-4, As Frenéticas...), faziam parecer que o Poetinha das crianças não havia partido ainda - meu pai mesmo, até pouco tempo, achava que Vinícius houvera morrido coisa apenas de uns 10 anos atrás (ainda se lembrando dos seus sucessos de novelas, como Meu Pai Oxalá, Como é duro trabalhar e Bem-Amado)! Já minha filha Isabela, que sequer sabe de quem se trata realmente, adora cantar A Foca, O Pato, O Peru, Aquarela e tantos outros clássicos do Mestre musicados por Toquinho...

Acho que o grande barato de Vinícius foi mesmo este: ser chama e imortal ao mesmo tempo, sendo infinito... sempre! E, o melhor, sem jamais isso ter sido sua intenção... Por isso, já merece todas as louvações pelo seu centenário neste mês, num legado que para sempre deverá ser lembrado: conclamar o "Brasil branco, preto, mulato" para a vida cheia de musicalidade e encantamento poético e infantil que sempre transbordou no brasileiro, sem jamais deixar de lado suas preocupações com nosso povo humilde, sabedor que era de sua alegria e musicalidade... Saravá, meu poeta-poetinha, velho camará: "tristeza não tem fim (felicidade, sim)", mas, quem sabe, como você certa feita vaticinou com sua alegria rediviva e eterna, "a tristeza que a gente tem, qualquer dia, vai se acabar..."!

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2 comentários:

Suzane Weck on 22 de outubro de 2013 às 23:27 disse...

Que espetáculo de texto.Um verdadeiro SHOW sobre o lendário,insubstituível e famoso Vinicius que tanto nos deixou para recordar.Aplaudindo de pé tua excepcional postagem.Meu grande abraço,SU

Camille on 31 de outubro de 2013 às 12:32 disse...

Não sabia que Gullar é maranhense. Vivendo e aprendendo mesmo. Quanto ao nosso poeta camarada, da pesada e do perdão, tb adoro ele. De uma maneira geral ele é quase um rito de iniciação de meninas na adolescencia. ( meninas com pais que tenham acessso a cultura, claro). Eu li muito os versos dele. E ainda sei muita coisa de cor. Por que nao bastava so ler, era uma coisa de introjetar mesmo.
De tudo ao meu amor serei atento...Maximo. Se apaixonava loucamente por que tinha medo da morte. Excelente tamponamento para o tema- o amor. Estava sempre enredado com alguem ne? Enfim, da para escrever um blog inteiro so de admiraçao por Vinicius, um ser tao singular. Adorei teu texto. Parabens,
Cam

 

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