quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Sobre o nada...


– Escreve um romance...

– Como assim...? Aquilo não me era nada claro! Afinal, era para eu escrever uma curta história de romance entre um homem e uma mulher, por sobre os mais tarimbados clichês existentes na subliteratura popular, ou era para que eu me aventurasse na densa seara de um romance, gênero bem mais comprido e complexo que as minhas habituais crônicas? Não sei responder... Infelizmente, mesmo contra a minha vontade, acaba por me vir à mente um sujeito que um dia chamei de amigo, mas que hoje desprezo como o ser mais infame e hipócrita que já tive o desprazer de conhecer, que certa feita me disse que eu tinha que, se algum dia realmente quisesse a atenção das editoras, atentar para o fato de que o mercado é dos romances, e não das crônicas ou dos poemas, meu campo de cultivo. Uma lástima, o conselho, a realidade, o sujeito lembrado... Não, não consigo nem um nem outro: tem que vir outra coisa!

– Escreve uma crônica sobre um romance...

– Ah, sim, como já fizera antes, até com certo ar de conto, brincando mais com personagens, espaço, tempo narrativos... Não, agora não dá: meu tempo é outro e não sinto a chama de algo quente: Deus, seria um romance morno, e a tal crônica, um angu indigesto! Afinal, creio eu, angu é prato que se coma frio... Não tem nada chegando nesse tema, vamos, mudança já! Sim, eu me lembro de Vinícius e Chico e suas crônicas musicais da melhor estirpe, e, para o momento, não tenho a declarar nessa alfândega! A folha permanece intacta e intocada, tamanha a minha atual inércia física na linha do amor... Definitivamente, nada a declarar!

– Escreve um poema romântico...

– Mas isso não é musa que se preze, nem voz interna que se apresente: Poesia romântica só Byron e Álvares de Azevedo pra fazer, que a ideia de “amor, I love you” não rimam com minha Sociologia poética de amores do derredor, com suas culpas amargas e seus pesados corpos em camas sujas de hotéis baratos perdidos pelo interior... Além do quê, como diria o mestre Nauro Machado, aplicando-me um duro tapa na coxa diante da minha gagueira de admiração, sentado, em frente ao ídolo dos versos psicossomáticos, “Poesia só se faz lendo Poesia: tem que ler poema, Poeta!” – nem Ferreira Gullar tem me permeado mais e sua obra completa jaz nalgum canto sujo da estante de aço... Poesia sem chance, coisa inacabada e a folha continua em branco, coisa mais absurda com gente que sempre se gabou do que dizer...

E então foi vinho razoável derramado por todo lado, depois do uísque barato finalizado, no apartamento degradado em azul morto da tela do computador acesa, mas sem word a preencher, com várias e várias folhas espalhadas pelo chão e pela mesa... Não havia mais o que fazer a não ser aquilo, estava decidido: não emplacara, perdeu o tempo da sua vida e a obra de uma vida nunca começou! O que ele poderia dizer à mãe doente e sem orgulho de sua cria – o mesmo que para o seu mecenas, o velho professor que acreditava em sua “promessa” de tempos idos e lhe pagava algumas contas? Não, não era aquilo... Sim, largara tudo sob o pretexto do “fazer o que se ama”, mas amor não se eterniza sem texto por baixo – então, sim, teria que ser aquilo... Nada que houvesse planejado muito, pode-se dizer, do alto onisciente deste narrador de passagem, que ora narra este trágico ocaso com sinceridade: foi tudo mesmo de supetão, sem cartas de despedida ou adeuses telefônicos ou virtuais, como que a implorar que alguém o salvasse – afinal, não queria ser salvo... E o vermelho-sangue jorrou por sobre a tela azul e o branco do papel sobre o chão, que esperava ansioso ou por uma nova impressão ou por qualquer esboço à mão... Adeus a tudo e a todos!



Acordou por volta do meio-dia. Indiferente ao telefone, que parecia tocar ao longe e que já registrava inúmeras ligações e mensagens do padrinho perturbado e da amante sem futuro... Coçou a cabeça, ainda meio que sem saber o que faria no começo de tudo, quando reparou fortes manchas vinho-avermelhadas que rajavam o chão coberto de folhas em branco – aquilo era arte pura e soava como as impressões etéreas que lhe causaram as obras de nomes como Frank Miller e Dave McKean nos idos anos 80 da passagem de sua infância de Disney e Mauricio de Souza para Alan Moore e Neil Gaiman... “Quadrinhos!”, gritou: era o que queria fazer! Esta era a vida com que sempre sonhara! Nada mais de frustrações sem amanhã, de contas atrasadas ou de profissões largadas antes mesmo de começar: e daí que fizera Jornalismo? Pra viver da pena comprada por grandes grupos políticos, cujas “notícias” são meros esquemas pré-fabricados para se botar, por cima, o que neles melhor se encaixar?! Não, não com ele: se sua lavra como escritor independente naufragou, nada melhor do que voltar às suas origens na arte do desenhar e se reinventar como quadrinhista! Sim, ele que tanto havia retratado seus professores em divertidas charges nas enfadonhas aulas do terceirão e da faculdade... Ele, que tantos personagens infantis criara em seus dias mais lúdicos, até que uma leva de super-heróis com barba por fazer e de passado mais atormentado do que Batman e Wolverine juntos passaram a pulular em suas pranchetas...

Mas, afinal, que linha seguir? Que personagem retomar? Ou seria melhor mesmo começar do zero e passar a fazer o jornalismo em Quadrinhos de um Joe Sacco? Tantas considerações e a mão, trêmula, sem sequer se lembrar do primeiro traço... A página em branco, esperando o contorno de novas ilustrações e nada... Difícil de crer: quantas vidas mais teria que sacrificar, diante do eclipse de seus talentos? Não era possível... Sim, as HQs, para além de grandes desenhos, também precisavam de bons roteiros... E, antes mesmo de qualquer romance, a ideia de roteirizar uma crônica ou um poema, seu ou de outrem, só conseguiam ser substituídos em sonhos de profissão perfeita pelo cobiçado cargo de crítico de Cinema de algum jornal badalado (coisa maravilhosa, que aprendera com o amigo Sabadin em tempos antigos)... Sim, poderia ser o grande roteirista por trás da nova leva de artistas brasileiros no exterior, como Joe Bennett ou Mike Deodato, gente do melhor calibre e que já haviam escrito para Marvel e DC! Isso mesmo: escrever era o caminho, mas a arte da escrita a complementar a complexa, porém ainda sem a devida valorização, arte da banda desenhada, como diziam amigos patrícios d’além-mar... Escrever para crer, para ver... Escrever para desenhar! Podia ser! Mas... O quê?

– Escreve sobre pandas...
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3 comentários:

Anônimo disse...

Que dialogo mais engraçado. Que inspiração foi essa amigo?! Acho que você superou as expectativas, seja de quem for, ou mesmo se não for de alguém, acho que deverias te sentires orgulhoso porque esse texto tá legal demais e divertido e romântico...

Parabéns mais uma vez.

Grande abraço (acho que de um fã já)

Cristiano

Suzane Weck on 11 de novembro de 2014 às 18:48 disse...

Ola meu caro Dilberto,adorei este super texto,que com tanta sinceridade foi escrito.E o final um tanto dramático ,mas apropriado como a"cereja do bolo".Meus sinceros cumprimentos e meu grande abraço.SU.

Elizabeth F. de Oliveira on 12 de novembro de 2014 às 17:52 disse...

Dilberto, meu caro, esse é, sem dúvida, um de seus melhores textos, senão o melhor! Escrever sobre algo sem sustentação é indubitavelmente somente para os que talento de sobra possuem. E esse é o seu caso, claro.
Suas divagações e a maestria com que usa a palavra fazem desse texto único, rico, belo, agradável, literário. Estou muito feliz em estar aqui e ter a oportunidade de lê-lo.
'Sobre o nada' mostra tudo. Tudo o que você sabe da arte da escrita.
Ter um texto assim como resultado da falta de um tema específico, mostra o quanto você é capaz de adentrar o mundo imaginário dos poetas. Essa linha tênue que separa e ao mesmo tempo se funde ao nosso olhar.
Só posso lhe dizer uma coisa depois dessa leitura: BRAVO!!!!


Ah, posso lhe pedir uma coisa??? 'Escreve sobre pandas'! :-)

 

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