Gênio de Sonho
Em meu saudosismo quase patológico, envolvo-me na pureza (ou na ideia de que ela possa existir) da melodia mais perfeita e me sinto tragado por uma pastoral de Beethoven ou por alguma das estações de Vivaldi (aí é que a divagação fica completa!) e logo penso que antes do branco era o preto e que antes da melodia havia o batuque: passo a imaginar um preto alto, magro, desajeitado, com a cara marcada e a boca de aparência desdentada, e dela sai o mais belo som de flauta, tão bonito quanto uma pastoral ou uma estação (ou ainda uma variação bachiana), porém mais pungente – tem malícia, tem ginga, um tempero todo diferente...
E que venha o piano, o saxofone e o instrumento que for, que o preto toca! E arranja (coisa nova até então) e compõe e orquestra para quem não sabe ler partitura e reinventa a música que antes só se via branco tocar... E segue o sonho, com o preto sendo aplaudido pela brancarada de todo lugar, de Paris a Buenos Aires, com Vila Lobos, Stokowski e Gnatalli a se babar - até o rei belga vinha se encantar! E tal como um Mozart, com um Sallieri em seu encalço, o preto, por vezes esquecido ou ainda perseguido pela bebida, foi tantas vezes invejado e injustiçado pelos Lacerdas da vida... Mas o preto, danado que só ele, acabou passando por cima de tudo, macumbou em Macunaíma, ensinou contraponto por tabela a muita gente, abrasileirou os clássicos europeus juntamente aos sambas africanos (criando um lamento novo, como num choro de criança que nasce) e ainda morreu como santo, numa igreja, em pleno carnaval...
Às vezes penso (ou sonho, ou divago...) se Pixinguinha mesmo existiu... Afinal, todos tantas vezes o viram de pijamas que chego a pensar se ele, ingênuo com toda aquela sua pureza, não estaria dormindo e sonhando sua música perfeita dentro de algum outro sonho que não o meu... Teria ele mesmo nascido (quando, afinal: em 1887, em 1888... em 1933?!), e seria no Catumbi ou na Piedade? E o apelido: viria do Bexiguinha da varíola ou do Pizindim de menino bom (e a tal avó africana realmente aconteceu?)? Eu me pergunto se esse preto batuta e genial realmente existiu ou se tudo não passou de um devaneio da Música Brasileira, que quis um dia nascer autêntica e acabou tomando carona no sonho dos acordes de mestre inventado pela mais pura e virtuosística composição musical já sonhada...
Acho que sofro porque quero e vivo perdendo a noção da realidade de propósito... Acordo, de repente, com o telefone e me pego com uma rosa no colo, ouvindo Carinhoso no rádio antigo, divagando, tristemente, naquele tempo maravilhoso que não vivi, a me embalar tetricamente na grande cadeira de balanço da casa do meu tio-avô Urbano, que adorava Pixinguinha e que hoje já não existe mais em lugar algum além de nas minhas melodiosas e oníricas recordações...
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